Saturday, 3 April 2021

Qual é a mudança que desejamos?

Entrada do Musicbox

O Musicbox em Lisboa fez-me sorrir mais do que uma vez nos últimos meses. Nunca estive lá e, ainda assim, fez-me sentir que já nos conhecemos e que estamos a passar por isto juntos.

Tenho questionado repetidamente porque é que tantas organizações culturais não parecem ser capazes de mostrar a sua face humana, partilhar sentimentos, estar perto das pessoas em diferentes momentos da vida (tanto da vida das pessoas como da vida das próprias organizações - que deveriam, na verdade, coincidir em tantos momentos). Em Maio de 2020, escrevi sobre a “Carta de Amor para uma Comunidade Carinhosa” do Globe Aroma - uma carta que expressava tristeza, preocupação, confusão perante a pandemia e que afirmava claramente que o local iria fechar, não por medo, mas por amor e carinho. Todas as outras comunicações com as quais me deparei naquela altura do confinamento - mas também quando chegou o momento de reabrir - soavam como um decreto. Naquele mesmo post em Maio passado, fiz uma primeira tentativa de criar uma lista de desejos, de definir os ingredientes que poderiam ajudar-nos a imaginar um mundo pós-pandémico melhor. Não fiz ainda uma segunda tentativa: tempo, humanidade, cuidado, respeito, apreço e missão; é o que estava - e ainda está - na minha lista de desejos.

Num debate recente sobre Liberdade, Participação, Inclusão e Museus, Álvaro Laborinho Lúcio preferiu pensar a pandemia não como uma oportunidade, mas como um absurdo. Lembrou-nos que a história da cultura – especialmente, a história da literatura - têm usado o absurdo para questionar a realidade e a normalidade. “É fundamental”, disse Laborinho Lúcio, “que não procuremos ultrapassar a pandemia com o desejo de regresso à normalidade. Devemos usar a pandemia como um absurdo que nos mostrou o que havia de deficiente na nossa normalidade.”

A mudança não vem sozinha ou de forma pacífica, confortável. Somos capazes de questionar a nossa realidade? Estamos dispostos a isso? Queremos, realmente, lutar por algo diferente, melhor? E com quem vamos lutar?

Há poucos dias, a historiadora da arte Raquel Henriques da Silva publicou uma carta aberta ao Primeiro-Ministro alertando (ou, melhor, recordando) sobre a persistente falta de políticas eficazes e de meios para os museus nacionais, desprovidos de recursos humanos e outros, e que resultarão em catástrofes. “As catástrofes avisam quase sempre antes de acontecerem”, dizia Henriques da Silva ao Primeiro-Ministro, aconselhando-o a visitar alguns museus quando reabrirem no dia 5 de Abril e desafiando-o a dar a sua palavra “às angustiadas chefias e equipas que é tempo de mudar e que a mudança vai mesmo acontecer.”

Naturalmente, estas palavras ecoaram entre muitos profissionais da área do património e dos museus. A mim, fizeram-me também questionar: Qual é a mudança que desejamos? Como definimos o absurdo nesta realidade? Quais são as falhas nesta normalidade? Escrevi no Facebook que este apelo ao Primeiro-Ministro, este aviso que é tempo de mudar, tem de ser também um apelo a nós próprios, os profissionais. E deve ser também um apelo da sociedade, tanto ao Primeiro-Ministro como aos profissionais. “A mudança terá de vir de dentro (virá?). Mas é preciso que seja exigida de fora também (será?).”

Não consigo ver a mudança acontecer se continuarmos a colocar o património num alto pedestal, ignorando o que está a acontecer no terreno, ou seja, independentemente das pessoas - tanto dentro quanto ao redor das organizações. Tive a mesma sensação ao ler a Carta de direitos e deveres do património histórico-cultural português, de Vítor Serrão. Estaremos a deixar as pessoas fora da equação? Quem constrói o nosso património, quem o define e porque é que o preservamos? É um processo que ocorre “apesar das pessoas”?

Entrada do Musicbox

Franklin Vagnone trouxe uma outra perspectiva no seu último post, Protecting what matters: “O segredo mais bem-guardado é que algumas instituições culturais, por causa de insustentáveis práticas na era pré-COVID, podem, de facto, estar numa posição melhor se permanecerem temporariamente fechadas e usar isto para seu benefício no longo prazo - repensando um modelo operativo que possa pagar um salário mínimo, que seja empático para com a equipa, anti-racista e que inclua uma liderança partilhada e colaborativa. Permanecer fechado pode não ser popular, mas as organizações querem, realmente, regressar aos seus modelos antiquados “top down”, os modelos do “antes” que se regiam por objectivos financeiros e de números de visitantes? Esta é uma opinião difícil de expressar. Na verdade, não tenho visto muito na imprensa sobre esta perspectiva. Estamos num momento crucial do nosso progresso social e económico. Ou vemos o momento presente como o fim da tempestade - ou o vemos, como eu, apenas como o olho do furacão e preparamo-nos para os ventos contrários. Agora não é o momento de baixar a guarda, de tirar os contra-placados que protegem as janelas e os sacos de areia que protegem o património cultural. Agora é o momento de verificarmos se estas proteções ainda são úteis. Devemos reflectir sobre as nossas formas de operar e as nossas políticas, olhando para novas formas e comportamentos organizacionais.”

No dia em que li isto, surgiam mais notícias na imprensa em relação ao assédio moral (bullying) de que têm sido alvo vários funcionários do Museu de Serralves e ao desrespeito pelos seus visitantes (uma pessoa fica estupefacta quando é informada que o pessoal da Bilheteira estava proibido de informar os visitantes sobre os descontos).

Qual é a mudança que desejamos?

No dia 23 de Março, tive a honra e o prazer de apresentar o orador principal da conferência Museus e responsabilidade social, François Mairesse. Em muitos países, existe um monumento ao soldado desconhecido. Decidi introduzir a sessão com uma homenagem ao profissional de museus desconhecido, que me escreveu alguns dias antes:

“Intensificou-se a minha angústia de que falta trabalho aos museus, neste novo mundo, agravado com a pandemia, mas não só, os conflitos, os migrantes, as novas escravaturas, e ainda mais pobreza no futuro, mesmo nos países em paz.

Certamente haverá mais pessoas a pensar o mesmo, será que em conjunto não poderíamos pensar numa estratégia e ações para contribuir para um maior conforto, a todos os níveis para algumas pessoas, que muitas vezes estão bem perto de nós.

Enquanto cidadãos e profissionais, nestes novos tempos e novas responsabilidades, há para todos nós uma convocação na

urgência de um olhar sustentável do mundo

urgência de paz entre humanos e natureza

urgência de economias e culturas mais inclusivas

urgência de olhar a pobreza

urgência de olhar para os atentados à dignidade humana.”


Qual é a mudança que desejamos?


Nessa mesma introdução, referi-me ao Trends Watch deste ano,
Navigating a Disrupted Future, que afirmava que: “Ao apoiarem as suas equipas, os museus estarão prontos para recuperar. Através do papel que desempenham em ajudar a sociedade a responder à pandemia, os museus demonstrarão o seu poder e relevância. Ao ajudarem a construir um mundo mais justo e equitativo, os museus irão afirmar o seu papel na criação de um futuro melhor.”

Foi precisamente no mundo dos museus que registámos as primeiras baixas da pandemia, com os educadores a serem considerados “não essenciais” por organizações em diferentes países, incluindo em Portugal, e serem deixados à sua sorte, em vez de apoiados e envolvidos na procura de soluções. Podemos realmente dizer que cuidaremos dos outros quando não parecemos ser capazes (ou disponíveis) de cuidar dos nossos?

A convite do Presidente da República, José Tolentino Mendonça dirigiu-se à nação no dia 10 de Junho de 2020, proferiu o discurso intitulado “O que é amar um país”. Referiu-se à etimologia da palavra latina communitas (comunidade). “Associando dois termos”, disse Tolentino, “cum e munus, ela explica que os membros de uma comunidade – e também de uma comunidade nacional - não estão unidos por uma raiz ocasional qualquer. Estão ligados por um múnus, isto é, por um comum dever, por uma tarefa partilhada. Que tarefa é essa? Qual é a primeira tarefa de uma comunidade? Cuidar da vida. Não há missão mais grandiosa, mais humilde, mais criativa ou mais atual.”

Qual é a mudança que desejamos?

Imagem retirada do website da American Alliance of Museums.


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