Entrada do Musicbox |
O Musicbox em Lisboa fez-me sorrir mais do que uma vez nos
últimos meses. Nunca estive lá e, ainda assim, fez-me sentir que já nos
conhecemos e que estamos a passar por isto juntos.
Tenho questionado repetidamente porque é que tantas organizações culturais não parecem ser capazes de mostrar a sua face humana, partilhar sentimentos, estar perto das pessoas em diferentes momentos da vida (tanto da vida das pessoas como da vida das próprias organizações - que deveriam, na verdade, coincidir em tantos momentos). Em Maio de 2020, escrevi sobre a “Carta de Amor para uma Comunidade Carinhosa” do Globe Aroma - uma carta que expressava tristeza, preocupação, confusão perante a pandemia e que afirmava claramente que o local iria fechar, não por medo, mas por amor e carinho. Todas as outras comunicações com as quais me deparei naquela altura do confinamento - mas também quando chegou o momento de reabrir - soavam como um decreto. Naquele mesmo post em Maio passado, fiz uma primeira tentativa de criar uma lista de desejos, de definir os ingredientes que poderiam ajudar-nos a imaginar um mundo pós-pandémico melhor. Não fiz ainda uma segunda tentativa: tempo, humanidade, cuidado, respeito, apreço e missão; é o que estava - e ainda está - na minha lista de desejos.
Num debate recente sobre Liberdade,
Participação, Inclusão e Museus, Álvaro Laborinho Lúcio preferiu pensar a
pandemia não como uma oportunidade, mas como um absurdo. Lembrou-nos que a
história da cultura – especialmente, a história da literatura - têm usado o
absurdo para questionar a realidade e a normalidade. “É fundamental”, disse Laborinho
Lúcio, “que não procuremos ultrapassar a pandemia com o desejo de regresso à
normalidade. Devemos usar a pandemia como um absurdo que nos mostrou o que
havia de deficiente na nossa normalidade.”
A mudança não vem sozinha ou de forma pacífica, confortável.
Somos capazes de questionar a nossa realidade? Estamos dispostos a isso?
Queremos, realmente, lutar por algo diferente, melhor? E com quem vamos lutar?
Há poucos dias, a historiadora da arte Raquel
Henriques da Silva publicou uma carta aberta ao Primeiro-Ministro alertando
(ou, melhor, recordando) sobre a persistente falta de políticas eficazes e de meios
para os museus nacionais, desprovidos de recursos humanos e outros, e que
resultarão em catástrofes. “As catástrofes avisam quase sempre antes de
acontecerem”, dizia Henriques da Silva ao Primeiro-Ministro, aconselhando-o a
visitar alguns museus quando reabrirem no dia 5 de Abril e desafiando-o a dar a
sua palavra “às angustiadas chefias e equipas que é tempo de mudar e que a mudança vai mesmo acontecer.”
Naturalmente, estas palavras ecoaram entre muitos
profissionais da área do património e dos museus. A mim, fizeram-me também
questionar: Qual é a mudança que desejamos? Como definimos o absurdo nesta
realidade? Quais são as falhas nesta normalidade? Escrevi
no Facebook que este apelo ao Primeiro-Ministro, este aviso que é tempo de
mudar, tem de ser também um apelo a nós próprios, os profissionais. E deve ser
também um apelo da sociedade, tanto ao Primeiro-Ministro como aos
profissionais. “A mudança terá de vir de dentro (virá?). Mas é preciso que
seja exigida de fora também (será?).”
Não consigo ver a mudança acontecer se continuarmos a colocar
o património num alto pedestal, ignorando o que está a acontecer no terreno, ou
seja, independentemente das pessoas - tanto dentro quanto ao redor das
organizações. Tive a mesma sensação ao ler a Carta
de direitos e deveres do património histórico-cultural português, de Vítor
Serrão. Estaremos a deixar as pessoas fora da equação? Quem constrói o nosso
património, quem o define e porque é que o preservamos? É um processo que
ocorre “apesar das pessoas”?
Entrada do Musicbox |
Franklin Vagnone trouxe uma outra perspectiva no seu último
post, Protecting
what matters: “O segredo mais bem-guardado é que algumas instituições
culturais, por causa de insustentáveis práticas na era pré-COVID, podem, de facto,
estar numa posição melhor se permanecerem temporariamente fechadas e usar isto
para seu benefício no longo prazo - repensando um modelo operativo que possa pagar
um salário mínimo, que seja empático para com a equipa, anti-racista e que inclua
uma liderança partilhada e colaborativa. Permanecer fechado pode não ser
popular, mas as organizações querem, realmente, regressar aos seus modelos
antiquados “top down”, os modelos do “antes” que se regiam por objectivos financeiros
e de números de visitantes? Esta é uma opinião difícil de expressar. Na
verdade, não tenho visto muito na imprensa sobre esta perspectiva. Estamos num
momento crucial do nosso progresso social e económico. Ou vemos o momento
presente como o fim da tempestade - ou o vemos, como eu, apenas como o olho do
furacão e preparamo-nos para os ventos contrários. Agora não é o momento de
baixar a guarda, de tirar os contra-placados que protegem as janelas e os sacos
de areia que protegem o património cultural. Agora é o momento de verificarmos
se estas proteções ainda são úteis. Devemos reflectir sobre as nossas formas de
operar e as nossas políticas, olhando para novas formas e comportamentos
organizacionais.”
No dia em que li isto, surgiam
mais notícias na imprensa em relação ao assédio moral (bullying) de que têm
sido alvo vários funcionários do Museu de Serralves e ao desrespeito pelos seus
visitantes (uma pessoa fica estupefacta quando é informada que o pessoal da
Bilheteira estava proibido de informar os visitantes sobre os descontos).
Qual é a mudança que desejamos?
No dia 23 de Março, tive a honra e o prazer de apresentar o
orador principal da conferência Museus e
responsabilidade social, François Mairesse. Em muitos países, existe um
monumento ao soldado desconhecido. Decidi introduzir a sessão com uma homenagem
ao profissional de museus desconhecido, que me escreveu alguns dias antes:
“Intensificou-se a minha angústia de que falta trabalho aos museus, neste novo mundo, agravado com a pandemia, mas não só, os conflitos, os migrantes, as novas escravaturas, e ainda mais pobreza no futuro, mesmo nos países em paz.
Certamente haverá mais pessoas a pensar o mesmo, será que em conjunto não poderíamos pensar numa estratégia e ações para contribuir para um maior conforto, a todos os níveis para algumas pessoas, que muitas vezes estão bem perto de nós.
Enquanto cidadãos e profissionais, nestes novos tempos e novas responsabilidades, há para todos nós uma convocação na
urgência de um olhar sustentável do mundo
urgência de paz entre humanos e natureza
urgência de economias e culturas mais inclusivas
urgência de olhar a pobreza
urgência de olhar para os atentados à dignidade humana.”
Qual é a mudança que desejamos?
Nessa mesma introdução, referi-me ao Trends Watch deste ano, Navigating a Disrupted Future, que afirmava que: “Ao apoiarem as suas equipas, os museus estarão prontos para recuperar. Através do papel que desempenham em ajudar a sociedade a responder à pandemia, os museus demonstrarão o seu poder e relevância. Ao ajudarem a construir um mundo mais justo e equitativo, os museus irão afirmar o seu papel na criação de um futuro melhor.”
Foi precisamente no mundo dos museus que registámos as
primeiras baixas da pandemia, com os educadores a serem considerados “não
essenciais” por organizações em diferentes países, incluindo em Portugal, e serem
deixados à sua sorte, em vez de apoiados e envolvidos na procura de soluções.
Podemos realmente dizer que cuidaremos dos outros quando não parecemos ser
capazes (ou disponíveis) de cuidar dos nossos?
A convite do Presidente da República, José Tolentino
Mendonça dirigiu-se à nação no dia 10 de Junho de 2020, proferiu o discurso
intitulado “O que é amar um país”. Referiu-se à etimologia da palavra latina
communitas (comunidade). “Associando dois termos”, disse Tolentino, “cum e
munus, ela explica que os membros de uma comunidade – e também de uma
comunidade nacional - não estão unidos por uma raiz ocasional qualquer. Estão ligados
por um múnus, isto é, por um comum dever, por uma tarefa partilhada. Que tarefa
é essa? Qual é a primeira tarefa de uma comunidade? Cuidar da vida. Não há
missão mais grandiosa, mais humilde, mais criativa ou mais atual.”
Qual é a mudança que desejamos?
Imagem retirada do website da American Alliance of Museums. |
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