Desde que vi este post do director do Museu da República, Mário de Souza Chagas, não consigo parar de pensar nele. Partilhei-o no Facebook simplesmente dizendo “Chama-se ‘liderança’”. O tipo de liderança que ansiamos em ver noutros directores de museus em todo o mundo.
Actuando num horrendo cenário político no Brasil, Mário Chagas
é uma espécie de farol para muitos de nós. Já em Novembro, convidado para falar
no 2º Encontro de Museus do Médio Tejo,
Mário também se destacou, quando afirmou que não é a tecnologia que traz a
novidade, são as relações humanas. “Novidade é dizer ‘Bom dia!’”. Lembrou-nos
também que os museus são espaços de memória e de esquecimento, podem servir para
o aprisionamento ou a libertação das mentes, e que devemos enfrentar o desafio
de democratizar a própria ferramenta ‘museu’.
Assim, para este director de museu, o facto do seu museu se tornar num centro de vacinação contra a COVID-19 marca um dos dias mais importantes de sua vida profissional. Faz sentido. Tanto num país cujo presidente subestimou e geriu a pandemia com enorme negligência (com consequências trágicas para muitos de seus cidadãos - parte de um plano mais alargado de negar a humanidade de muitas pessoas ), mas também noutros países.
De Mário Chagas, o meu pensamento voou para a Esme Ward, directora do Manchester Museum. Numa conversa que tivemos há cerca de dois anos, Esme contou-me sobre "A rubbish night at the museum” (Uma noite de lixo no museu), uma ideia que surgiu quando recebeu um e-mail de um vizinho, expressando as suas preocupações em relação ao lixo e à poluição. Contou-me também sobre o facto do museu se ter oferecido para receber “Difficult Dialogues” (Diálogos difíceis), uma iniciativa do grupo inter-religioso “We Stand Together”, fundado após o ataque terrorista na Arena de Manchester em 2017. Estas não são iniciativas isoladas, pontuais, oportunistas. São desenvolvidas para cumprir uma visão mais ampla do museu em relação ao seu posicionamento na sociedade.
Estes são museus que não abraçam a ilusão de serem
"neutros" ou "apolíticos", porque não mencionam certas coisas.
São museus que percebem que sempre comunicam, quando falam e quando não falam; com
o que fazem e com o que não fazem. Estes museus não são dirigidos por simples
diretores executivos, são dirigidos por pessoas que têm uma visão que pode
inspirar outras pessoas a agir, começando pelas suas próprias equipas.
Publiquei recentemente um artigo intitulado “A curadoria do desconforto” e uma colega chamou a minha atenção para uma discussão que se estava a
desenrolar a propósito dele numa página no Facebook. Alguém argumentava
veementemente que, quando o profissional da cultura mistura a sua opinião técnica
com a política, perde a credibilidade; que deve ser imparcial. Aos que lhe responderam
que a imparcialidade é um mito, reiterou: “Diga-me, onde está a Política na
galeria de Pintura e Escultura do terceiro piso do MNAA [Museu Nacional de Arte
Antiga]?”.
Há uma incapacidade generalizada de fazer a distinção entre
política e partidos, bem como de perceber que a política é feita tanto de
declarações quanto de silêncios, de ações e de omissões. E que isto é sentido e
compreendido por muitos cidadãos, tendo um impacto decisivo na natureza da
relação que diferentes pessoas desenvolvem com organizações como os museus -
ferramentas de poder que decidem o que deve ser lembrado e o que pode ser
silenciado. Há uma necessidade de os museus serem liderados por pessoas
conscientes e envolvidas no que se passa à sua volta; que possam ser humildes e
corajosas; que tenham a capacidade de ouvir e de assumir riscos.
Isto torna-se particularmente relevante em Portugal, dias
após o anúncio dos nomes dos novos directores de alguns museus nacionais. Ao
contrário do que se esperava aquando da abertura do concurso internacional, não
encontramos museólogos entre eles. Foi porque estes profissionais não responderam
à chamada? Foi porque não conseguiram apresentar uma candidatura forte? Vários
colegas (entre eles, alguns candidatos) já comentaram que o processo foi
construído de uma forma que favorecia os já ‘iniciados’. Não sei, procurei informação
sobre isto na altura. Mas, a julgar pelas primeiras entrevistas que surgiram na
imprensa, não posso deixar de manifestar a minha preocupação pelo facto de, por
exemplo, Santiago Matias, novo director do Panteão Nacional, ter optado por destacar que tem “muitas ideias para preparar
iniciativas ao longo dos próximos anos”, com o objectivo de “incluir, o mais
possível, setores da nossa sociedade que nem sempre estão muito abertos a
visitar sítios como este monumento, nomeadamente os mais jovens”. Se quisermos
ver esta afirmação, um tanto banal, sob o prisma de um contexto mais amplo, o
novo director diz-nos que tem uma visão bastante conservadora, “não só no
sentido de que os monumentos como o Panteão são espaços da maior importância em
termos de homenagem àqueles que lá estão, fisicamente, e através de memórias,
mas também enquanto sítio de construção e de preservação da memória coletiva do
país”. Acho a escolha de palavras inquietante, teremos de ver o que significam na
prática. Mas pergunto-me: é esta a visão que os Portugueses merecem
do director de um museu ou monumento em 2021? É esta visão que os membros do
júri valorizaram e pensaram que serviria melhor a nossa sociedade, na sua
plenitude?
Actualmente, no Reino Unido, existem grandes preocupações em
relação à independência editorial dos museus, visto que o governo espera que
eles “permaneçam imparciais e não fiquem presos por uma 'minoria vocal'”. Num
encontro promovido pelo Ministério esta semana, que a Museums Journal define
como "educado, mas controlado" (polite, but managed), ficou decidido
que será formado um grupo de trabalho para desenvolver orientações sobre como pôr
em prática a política governamental de "manter e explicar" sobre a história
contestada.
Momentos como este - seja no Brasil, no Reino Unido, em Portugal, na Polónia e, aliás, em muitos outros países - exigem uma liderança forte no sector, uma liderança da qual ainda não sentimos grande falta. Muitos entre nós não parecem aperceber-se da sua ausência ou não querer lidar com ela. Perceber que temos um problema é o primeiro passo. Talvez o segundo possa ser perguntarmos a nós próprios: “Quais foram os dias mais importantes da nossa vida profissional?”.
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