Thursday 10 February 2022

Ter tempo, dar tempo

 

S. Miguel, Açores (Foto: Maria Vlachou)

Há dias, li uma entrevista do realizador grego Sotiris Tsafoulias, em que dizia: “Ser artista não é uma profissão. Uma mulher que tem cinco filhos, não tem marido, limpa escadas e ainda põe uma tigela com água para um cão vadio ou olha para nós e diz ‘bom dia’, para mim, ela é uma artista. Uma pessoa não se torna artista quando pega num microfone, num pincel ou numa caneta. A forma como uma pessoa lida com a feiura, a forma como a metaboliza e a devolve como bondade ou como luz, a forma como se posiciona nos momentos sombrios da sua vida, para mim, é isto que faz de uma pessoa artista, independentemente da profissão.”

Partilhei este excerto da entrevista num encontro com colegas da Rede Cultura 2027, responsável pela candidatura de Leiria a Capital Europeia da Cultura, porque temos a tendência de fazer coincidir os termos “cultura” e “arte” e Tsafoulias reorienta-nos. Marta Porto tem também insistido bastante sobre este ponto. No seu livro “Imaginação: reinventando a cultura” lembra-nos que as políticas que dão corpo à cultura devem “estimular mentalidades sensíveis e capazes de estruturar sociedades onde o cumprimento de direitos não é ato de misericórdia, mas ato consciente que responde a um imperativo democrático.” E acrescenta: “Quando os exemplos são exceções, podemos falar de falta ou de necessidade de educação. Quando são maioria, falamos de cultura social, de um imaginário de como nos manifestamos, percebemos e agimos como corpo social.”

Como construir uma maioria de pessoas capaz de dizer “bom dia”, menos desconfiada do outro, mais disponível para cuidar do comum, com mais tempo para reflectir e conversar, sem medo de amar?

Antes do encontro em Leiria, tive o privilégio de realizar formações em quatro pontos diferentes do país e replectir sobre as barreiras à participação cultural. Foi no âmbito da nova edição do Projecto PARTIS & Art for Change, promovido pela Fundação Calouste Gulbenkian e a Fundação La Caixa. Estivemos em Beja, Espinho, Ponta Delgada e Guarda e foi bom: porque estivemos juntos, entre colegas já conhecidos e outros novos; porque houve tempo para conversarmos, encontrarmos inspiração e imaginarmos possibilidades; porque ficámos mais conscientes das diferentes realidades vividas no terreno. Continuo a pensar e a tentar arrumar ideias depois da experiência intensa que tivemos.

Voltei a verificar que nos conhecemos pouco, mesmo quando trabalhamos próximo uns dos outros. Algo que se constatou também em 2017, quando a Acesso Cultura realizou as jornadas Além do físico: barreiras à participação cultural. Depois chegam estes momentos das formações, passamos algumas horas juntos, cria-se cumplicidade, manifesta-se vontade (necessidade mesmo) de manter o contacto. E depois… cada um regressa ao seu dia-a-dia, sem fazer o esforço de dar mais tempo a esses momentos, de dar mais tempo a si próprio para uma pausa, um encontro, uma conversa, uma leitura, uma reflexão em conjunto. Assim, fica cada um no seu “canto”, fazendo coisas boas e bonitas, enfrentando dificuldades e angústias (muitas comuns e conhecidas). Espera-se e desespera-se, e há um sentimento de isolamento e, às vezes, mesmo de solidão. Estaremos, realmente, tão sós? Teremos tempo para descobrir que… talvez não?

Ao mesmo tempo, existem factores que nos obrigam a aterragens abruptas e que não podemos ignorar. Como quando colegas do chamado “interior” (um “interior” que, neste caso, inclui também o Algarve) dizem que nas suas regiões só pode fazer ou participar em projectos quem tem carro… O que dizer sobre isto? À procura de orientação, volto ao artigo de 2020 da Joana Villaverde “As vidas do interior importam”, em que nos interpelava: “O que é que realmente delimita e denomina essa interioridade? Não será a distância até ao mar, com certeza, porque essa é curta. O que delimita e denomina o interior são as políticas implementadas há séculos, e há séculos sem grandes mudanças. Este país não tem interior. Este país tem pessoas interiorizadas e empurradas para o esquecimento.”

Numa das formações, tive a oportunidade de almoçar com uma jovem colega. As suas intervenções durante a sessão transmitiam curiosidade e uma agradável inquietação. Então, ao almoço, contou-nos que saiu do sítio “seguro” e “prestigiado” onde trabalhou nos últimos anos. Disse que aprendeu muito, cresceu, mas que, em determinado momento, sentiu que já não estava a fazer nada de relevante e que não tinha vida privada. Demitiu-se. O seu desejo é conhecer o país, os seus diversos cantos, e ser útil. A sua confiança e optimismo foram contagiantes. Uma nova janela de esperança.

Depois das formações, tivemos mais um fim-de-semana “Isto é PARTIS & Art for Change”. Fiquei a pensar: o que é que me faz sentir tão cheia, tão leve, tão em paz, tão esperançosa quando acaba esse fim-de-semana? Talvez o facto de estarmos num ambiente onde se sente amor e humanidade; num espaço onde nos cruzamos com pessoas até há pouco desconhecidas, mas que acabam por se tornar próximas de tantas formas diferentes; num momento em que temos tempo, damos tempo.  Esse fim-de-semana é como um grande e forte abraço dado por muitas pessoas.

 

Ler ainda neste blog:

TS Elliot, um terrível artista hip hop (escrito depois do fim-de-semana “Isto é PARTIS” em 2018).

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