S. Miguel, Açores (Foto: Maria Vlachou) |
Há dias, li uma entrevista do realizador grego Sotiris Tsafoulias, em que dizia: “Ser artista não é uma profissão. Uma mulher que tem cinco filhos, não tem marido, limpa escadas e ainda põe uma tigela com água para um cão vadio ou olha para nós e diz ‘bom dia’, para mim, ela é uma artista. Uma pessoa não se torna artista quando pega num microfone, num pincel ou numa caneta. A forma como uma pessoa lida com a feiura, a forma como a metaboliza e a devolve como bondade ou como luz, a forma como se posiciona nos momentos sombrios da sua vida, para mim, é isto que faz de uma pessoa artista, independentemente da profissão.”
Partilhei este excerto da entrevista num encontro com
colegas da Rede Cultura 2027,
responsável pela candidatura de Leiria a Capital Europeia da Cultura, porque
temos a tendência de fazer coincidir os termos “cultura” e “arte” e Tsafoulias reorienta-nos.
Marta Porto
tem também insistido bastante sobre este ponto. No seu livro “Imaginação: reinventando a cultura” lembra-nos que as
políticas que dão corpo à cultura devem “estimular mentalidades sensíveis e
capazes de estruturar sociedades onde o cumprimento de direitos não é ato de
misericórdia, mas ato consciente que responde a um imperativo democrático.” E
acrescenta: “Quando os exemplos são exceções, podemos falar de falta ou de
necessidade de educação. Quando são maioria, falamos de cultura social, de um
imaginário de como nos manifestamos, percebemos e agimos como corpo
social.”
Como construir uma maioria de pessoas capaz de dizer “bom
dia”, menos desconfiada do outro, mais disponível para cuidar do comum, com
mais tempo para reflectir e conversar, sem medo de amar?
Antes do encontro em Leiria, tive o privilégio de realizar
formações em quatro pontos diferentes do país e replectir sobre as barreiras à
participação cultural. Foi no âmbito da nova edição do Projecto PARTIS &
Art for Change,
promovido pela Fundação Calouste Gulbenkian e a Fundação La Caixa. Estivemos em
Beja, Espinho, Ponta Delgada e Guarda e foi bom: porque estivemos juntos, entre
colegas já conhecidos e outros novos; porque houve tempo para conversarmos,
encontrarmos inspiração e imaginarmos possibilidades; porque ficámos mais
conscientes das diferentes realidades vividas no terreno. Continuo a pensar e a
tentar arrumar ideias depois da experiência intensa que tivemos.
Voltei a verificar que nos conhecemos pouco, mesmo quando
trabalhamos próximo uns dos outros. Algo que se constatou também em 2017,
quando a Acesso Cultura realizou as jornadas Além do físico: barreiras à participação cultural.
Depois chegam estes momentos das formações, passamos algumas horas juntos,
cria-se cumplicidade, manifesta-se vontade (necessidade mesmo) de manter o contacto.
E depois… cada um regressa ao seu dia-a-dia, sem fazer o esforço de dar mais
tempo a esses momentos, de dar mais tempo a si próprio para uma pausa, um
encontro, uma conversa, uma leitura, uma reflexão em conjunto. Assim, fica cada
um no seu “canto”, fazendo coisas boas e bonitas, enfrentando dificuldades e
angústias (muitas comuns e conhecidas). Espera-se e desespera-se, e há um
sentimento de isolamento e, às vezes, mesmo de solidão. Estaremos, realmente,
tão sós? Teremos tempo para descobrir que… talvez não?
Ao mesmo tempo, existem factores que nos obrigam a aterragens
abruptas e que não podemos ignorar. Como quando colegas do chamado “interior”
(um “interior” que, neste caso, inclui também o Algarve) dizem que nas suas
regiões só pode fazer ou participar em projectos quem tem carro… O que dizer
sobre isto? À procura de orientação, volto ao artigo de 2020 da Joana Villaverde “As vidas do interior importam”, em
que nos interpelava: “O que é que realmente delimita e denomina essa
interioridade? Não será a distância até ao mar, com certeza, porque essa é
curta. O que delimita e denomina o interior são as políticas implementadas há
séculos, e há séculos sem grandes mudanças. Este país não tem interior. Este
país tem pessoas interiorizadas e empurradas para o esquecimento.”
Numa das formações, tive a oportunidade de almoçar com uma
jovem colega. As suas intervenções durante a sessão transmitiam curiosidade e
uma agradável inquietação. Então, ao almoço, contou-nos que saiu do sítio “seguro”
e “prestigiado” onde trabalhou nos últimos anos. Disse que aprendeu muito,
cresceu, mas que, em determinado momento, sentiu que já não estava a fazer nada
de relevante e que não tinha vida privada. Demitiu-se. O seu desejo é conhecer
o país, os seus diversos cantos, e ser útil. A sua confiança e optimismo foram contagiantes.
Uma nova janela de esperança.
Depois das formações, tivemos mais um fim-de-semana “Isto é
PARTIS & Art for Change”. Fiquei a pensar: o que é que me faz sentir tão cheia,
tão leve, tão em paz, tão esperançosa quando acaba esse fim-de-semana? Talvez o
facto de estarmos num ambiente onde se sente amor e humanidade; num espaço onde
nos cruzamos com pessoas até há pouco desconhecidas, mas que acabam por se
tornar próximas de tantas formas diferentes; num momento em que temos tempo,
damos tempo. Esse fim-de-semana é como
um grande e forte abraço dado por muitas pessoas.
Ler ainda neste blog:
TS Elliot, um terrível artista hip hop (escrito depois do fim-de-semana “Isto é PARTIS” em 2018).
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