Monday 8 July 2013

'Apenas' um museu, 'apenas' uma artista?

A artista Ahlam Shibli no Jeu de Paume (Foto LP/Philippe de Poulpiquet, retirada do jornal Le Parisien)
Já tinha escrito aqui sobre a minha experiência de há vinte anos quando visitei um museu de história na cidade de Halifax no Reino Unido. Tinha ficado absolutamente chocada quanto vi, numa das fotografias expostas, combatentes da resistência cipriota contra o poder britânico a serem identificados como “terroristas”. Ao mesmo tempo, penso que me apercebi naquela altura – tinha 23 anos – que havia pessoas que contavam aquela mesma história de uma forma completamente diferente. Os homens na fotografia poderiam ter matado os seus entes queridos, que tinham sido enviados pelo seu país para defender uma autoridade, na sua opinião, legítima.

Mesmo assim, independentemente do meu choque, não ameacei o museu com uma bomba, não iniciei uma petição para fechar a exposição. Que é exactamente o que tem acontecido em Paris nas últimas semanas como resposta a certas fotografias exibidas no âmbito da exposição Foyer Fantôme, no museu Jeu de Paume, pela artista palestiniana Ahlam Shibli. Porquê? Porque certas pessoas sentiram que a exposição de fotografias de bombistas suicidas palestinianos, e o facto de serem referidos como “mártires”, era uma forma de glorificar o terrorismo. Considero, obviamente, as reacções e ameaças dos grupos pró-Israelitas totalmente inaceitáveis. Mas devo também dizer que não me surpreendem. O assunto é sensível, controverso, e aqueles que afirmam estar surpreendidos pelas fortes reacções de certos grupos ou que nos avisam relativamente ao retorno da censura (ler o artigo de Emmanuel Alloa La censure est de retour) ou são ingénuos ou não são honestos com eles próprios e com os outros. Não há nada de novo ou de surpreendente nestas tentativas de censura, aconteceram no passado e voltarão a acontecer. Mas não é sobre isto que quero falar.

Elogio os museus que têm a coragem de tocar em assuntos difíceis e controversos. Os museus devem fazer exactamente isso: desafiar as nossas ‘histórias’, apresentar ‘o outro lado’, provocar debate, criar espaço para isso. No entanto, não tenho a certeza se o propósito do Jeu de Paume era esse.

Lê-se no website do museu relativamente à exposição: “Morte, a última série de Ahlam Shibli, especialmente concebida para esta retrospectiva, mostra como a sociedade palestiniana preserva a presença de ‘mártires’, de acordo com o termo usado pela artista. Esta série testemunha uma vasta representação dos ausentes através de fotos, cartazes, painéis e graffitis expostos como forma de resistência.” O museu parece ter perfeita consciência que o uso do termo ‘mártir’ pode ser controverso e atribui o mesmo à artista. Por outro lado, a artista, citada no artigo de Emmanuel Alloa, afirma que “O meu trabalho é apenas mostrar, não é nem denunciar nem julgar”. 

Na minha opinião, as exposições não mostram ‘apenas’. Nem os artistas. Exposições e artistas fazem afirmações. A Ministra Francesa da Cultura pareceu-me muito mais afirmativa no seu comunicado público e não pareceu querer fugir àquela que é a verdadeira questão: “Esta alegada neutralidade pode também ser chocante”, disse ela, “e causar más interpretações, uma vez que não explica o contexto das fotografias, que não é apenas aquele da perda, mas também o do terrorismo.” (ler o comunicado na íntegra aqui).

Death nr. 37, por Ahlam Shibli (imagem retirada do blog Lunettes Rouges)
O Ministério pediu ao museu para completar a informação disponibilizada aos visitantes para, por um lado, clarificar e explicar melhor o propósito da artista e, por outro, para fazer a distinção entre a proposta da artista e posição da instituição. A Ministra foi atacada de todos os lados, pró e contra a exposição. Pessoalmente, não vejo porque é que um museu deveria manter a distância das suas opções da forma como parece ter sido sugerido pelo Ministério Francês. O que deveria ficar mesmo claro é por que razão o museu escolhe apresentar a exposição A ou B ao público, como é que esta escolha vai ao encontro da sua missão e programação, o que pretende comunicar, que género de reflexão e discussão procura promover.

Não posso dizer que são claros para mim os propósitos do Jeu de Paume e as razões porque optou por apresentar uma artista que ‘quer apenas mostrar’. Procurei várias vezes no website do museu a existência de um programa paralelo que poderia complementar a exposição com comunicações e debates. Nada. Quando foi finalmente anunciado um debate, organizado pelo museu e pelo Observatoire de la Liberté de Création, “reagindo à controvérsia gerida pela exposição”, este iria abordar questões como a liberdade da representação artística, a responsabilidade das instituições que expõem obras que possam causar polémica, a liberdade do visitante de ter acesso às obras e a liberdade de expressão em todas as suas componentes (ler aqui).

Isto é tudo muito bom. Isto é exactamente o que deveria ter sido programado antecipadamente e não como reacção a uma polémica. E deveria ter ido mais longe do que a discussão geral da liberdade de criar, liberdade de expor, liberdade de visitar. Esta exposição levanta outras questões importantes e específicas.

Teria esperado que o Jeu de Paume não fingisse que não estava à espera de uma enorme polémica quando bombistas suicidas palestinianos são referidos como mártires. Teria esperado que a artista não quisesse “apenas mostrar”, como se fosse ‘apenas’ uma repórter, como se não tivesse tirado e exposto estas fotos com a intenção de fazer uma afirmação. Teria esperado que ambos, o museu e a artista, quisessem verdadeiramente provocar um debate, empurrar as fronteiras para a frente, criar espaço para discutir o que é história, identidade, conflito, justiça, resistência, um acto ou um estado terrorista. Esta é a questão palestiniana, aqui não há “apenas”.

Ainda neste blog

As histórias que contamos a nos próprios

Silenciosos e apolíticos?

A longa distância entre Califórnia e Jerusalém


Mais leituras

Marie-José Mondzain, Artiste palestinienne : liberté pour l'art au Jeu de Paume (Le Monde, 21.6.2013)


G.W. Goldnadel, France/Jeu de Paume: double honte (Israël Flash, 21.6.2013)
Marta Gili: Je refuserai toujours lacensure au Jeu de Paume. Entrevista da Directora do Jeu de Paume (Le Figaro, 24.6.2013)

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