Saturday, 19 September 2020

Os sonhos de diversidade das nossas equipas homogéneas

Jemma Desai, autora de "This work isn't for us"

Em 2020, o tema do Dia Internacional dos Museus (DIM) foi “Museus pela Igualdade: Diversidade e Inclusão”. No campo da Cultura, normalmente reflectimos sobre estes conceitos considerando os chamados “públicos”. Expressamos o nosso desejo de atrair mais pessoas, pessoas diversas, e de nos tornarmos num lugar “para todos”.

O tema do DIM deste ano permitiu-me dar um passo à frente (ou terá sido atrás?) e considerar: podemos esperar ser mais relevantes e criar relações com pessoas diversas (o "público") se nós (as equipas) permanecemos teimosamente homogéneos? Tive a oportunidade de colocar esta pergunta pela primeira vez num pequeno vídeo para o Museu Municipal Carlos Reis no DIM e, mais recentemente, numa mini-conferência para o Museu da Cidade de Aveiro, intitulado “Museus, Educação e Diversidade”. Este foi também um dos pontos levantados pela associação Acesso Cultura, ao comentar o relatório preliminar do Grupo de Projecto Museus no Futuro.

O movimento Black Lives Matter teve um impacto significativo nas organizações culturais nos Estados Unidos. Como escrevi em Junho, no meu post Do silêncio para a hashtag para atomada de posição, entre 2014 e 2020, houve uma mudança significativa do silêncio (O que é que isto tem a ver connosco?) para declarações públicas (Não podemos ficar calados), reafirmando o compromisso de diferentes organizações com a igualdade, a justiça e o anti-racismo .

O que é realmente novo em 2020, no entanto, são as inúmeras declarações públicas feitas por membros das equipas, denunciando o racismo sistémico e a hostilidade nos ambientes de trabalho, tornando evidente a grande distância entre o posicionamento público de uma organização e as suas práticas internas. A mais recente refere-se ao Brooklyn Museum (um dos meus favoritos e, por isso, difícil de ler), e outras ainda podem ser encontradas no meu post Não consigo respirar e nas contas do Instagram @cancelartgalleries, @changethemuseum e @abetterguggenheim. O que essas declarações e questionamentos públicos nos ajudaram a perceber é o grau da nossa inconsciência em relação ao que constitui racismo sistémico, discriminação e hostilidade nas organizações culturais.

Os interessados ​​em entender melhor as nuances que facilmente nos passam despercebidas podem encontrar um relato claro e incisivo no texto de Jemma Desai This work isn't for us (Este trabalho não é para nós, 2020). Jemma Desai é escritora, curadora e programadora do London Film Festival. Foi também gestora de programas de cinema no British Council. Na introdução, esclarece o propósito do seu texto:

Escrevo como respondente, mas também como destinatária e participante activa das políticas de diversidade do sector cultural nos últimos 15 anos. Escrevo como uma londrina que, ao participar no sector cultural, sentiu-se cúmplice de uma espécie de gentrificação de mim própria e da minha cidade, cúmplice do que o meu amigo e mentor Madani Younis descreve como um "appartheid cultural", apresentando regularmente trabalhos em espaços onde as equipas ou os públicos raramente reflectem as populações em que estão localizados.

Jemma prossegue, dizendo que a sua experiência com o sector cultural e o que dele resulta problematiza as estatísticas sobre as políticas de diversidade:

… A minha luta para ser vista na totalidade da minha experiência enquanto trabalhadora do sector cultural é uma negação delas. (...) Narrativas de diversidade em documentos públicos geralmente focam as faltas, falhas e descrição da marginalização dos excluídos, em vez dos comportamentos e atitudes daqueles que são os beneficiários dessa exclusão - muitas vezes aqueles que fazem a exclusão.

Is New York’s Arts Diversity Plan Working?, foi a questão colocada num artigo recente do The New York Times. “É difícil dizer”, acrescentou. Talvez não seja tão difícil dizer. Vemos isso à nossa volta, os planos para a diversidade em diferentes países não têm funcionado. Não se trata apenas de definir indicadores quantitativos de avaliação, mas também de ouvir. Colegas como Jemma Desai ou Sade Brown (agora Sade Banks, sobre quem já escrevi neste blog) podem ajudar-nos a entender o porquê. Pessoas de meios e com experiências de vida diversos são ainda muito poucas nas nossas organizações e não fazem parte dos processos de planeamento e tomada de decisões. A sua visão do mundo e experiência de vida não são realmente valorizadas. As opiniões que divergem são mais um problema do que uma oportunidade de fazer melhor. E, embora algumas "caras negras e caras morenas" possam fazer parte das equipas, as suas vozes são silenciadas pelo que Sara Ahmed chama de "branquitude institucional" e espera-se que elas sejam principalmente “integradas” e “enculturadas” no sistema (este é um bom momento para lembrar a palestra de Sade Banks What did you have to leave at the door inorder to show up today?).


Sade Banks, fundadora de Sour Lemons

Algumas organizações culturais dirão que, quando anunciam um posto de trabalho, não se esquecem de mencionar que aceitam candidaturas de todos, "independentemente de sua etnia, sexo, crenças religiosas, orientação sexual, idade, estado civil ou se têm ou não uma deficiência.” Essa é a coisa certa a fazer, mas podemos honestamente dizer que é o suficiente? Que tem funcionado?

Além disso, há uma outra questão que devemos associar a este ponto: a falta de pessoas vindas de diferentes grupos “minoritários” com formação académica, para que possam realmente aparecer como candidatas. Lee Rosenbaum, uma jornalista cultural, também falou sobre isto recentemente no seu post Diversity diversion: Plumbing museums’ “pipeline” problem in hiring minorities: embora os museus possam facilmente concordar que deveriam contratar mais candidatos ‘minoritários’ e embora este problema persistente seja indiscutivelmente uma manifestação do racismo sistémico nos museus, devemos igualmente reconhecer a relativa escassez de candidatos de minorias com formação para serem curadores e exercer cargos executivos nas grandes instituições das artes visuais.

Há dois anos, a decisão do Brooklyn Museum de contratar uma mulher branca, Kristen Windmuller-Luna, como curadora no departamento de arte africana gerou críticas intensas (leiam aqui), pois muitas pessoas consideraram que o trabalho deveria ter sido atribuído a uma pessoa de cor. O museu defendeu a sua escolha, apoiado também pelo falecido curador nigeriano Okwui Enwezor, dizendo que Windmuller-Luna foi uma candidata extraordinária escolhida por unanimidade. Mais significativa, no entanto, foi a declaração de Steven Nelson, professor de História da Arte Africana e Afro-americana, que disse que as críticas contra o museu eram o resultado de um equívoco público “de que os académicos e curadores de arte africana são, em grande parte, pessoas de cor... No entanto, o campo da história de arte africana nos Estados Unidos é maioritariamente branco e feminino. Eu pertenço a um pequeno punhado de afro-americanos que se especializaram em história da arte africana.”

Assim, temos uma questão mais urgente para tratar: Podemos esperar ter equipas mais diversificadas se o nosso sistema de ensino, a todos os níveis, não oferece espaços acolhedores e não apresenta a todos os alunos oportunidades para considerarem uma carreira na área da cultura e das artes? E, associado a isso, podemos esperar que os jovens considerem este caminho para o seu futuro se as organizações culturais continuam teimosamente brancas - em termos de pessoal, conteúdos e programas? É um círculo vicioso e devemos quebrá-lo.

Esta semana, li no International Arts Manager que o Clore Fellowship, um dos poucos e mais prestigiados programas de liderança no campo da cultura, anunciou que em 2021 o foco será ajudar os líderes BAME (Black, Asian and Minority Ethnic - Negros, Asiáticos, e de Etnias Minoritárias) através do programa Brilliant Routes, liderado pela Directora Criativa Gaylene Gould. Esta é uma boa notícia, uma indicação de que estão mais conscientes das falhas no sistema. Sade Banks, também fellow do Clore, já tinha começado a trabalhar nestas questões, quando criou a sua empresa Sour Lemons, com o objectivo de “Irromper as mesas criativas e culturais de tomada de decisões com líderes que são por acaso sub-representados.” Através de programas como “Making Lemonade”, Sade trabalha para “reconstruir uma indústria cultural e criativa inclusiva, onde todos possam prosperar”. Mais recentemente, com "Enabling Environments", pretende "afastar-se dos esquemas de diversidade, concebidos para ‘fazer as pessoas encaixar’, e começar a desmantelar o sistema concebido para as manter afastadas."

Em Portugal, estamos muito longe de ter estas discussões. Como disse no início, a nossa reflexão sobre a diversidade centra-se principalmente no “público” e muitas vezes traduz-se em “programas especiais” para “dias especiais”. Frequentemente, partilhamos a nossa preocupação pelo facto das pessoas - depois de as recebermos naquele "dia especial" - não voltarem. Porque haviam de voltar, se o nosso trabalho principalmente contribui para a manutenção do modelo branco de “business-as-usual”, expresso de todas as formas possíveis - falta de representação nas equipas e processos de tomada de decisão, conteúdos e programas? Porque haviam de voltar se, depois daquele “projecto especial”, a nossa organização continua irrelevante para elas? Há uma necessidade de mudança, de mudança estrutural, e está claro que a nossa “branquitude institucional” não pode fazê-la acontecer sozinha.

 

Sugestão

This work isn’t for us – Parte 1 e Parte 2 (vídeos)

 

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