O governo de Lavrov está a realizar ataques aéreos contra civis na Síria (incluindo as crianças que vemos na televisão e que partem os nossos corações), apoiando um ditador. Eles também invadiram um país vizinho e ocupam uma parte dele. Porque é que o governo grego e o Museu Bizantino deram uma oportunidade ao Ministro de Negócios Estrangeiros russo e ao seu governo de parecerem... civilizados?
Não houve resposta, nem mesmo dos fãs que gostaram e
partilharam o post do museu e que, muitas vezes, vêm em defesa de suas
organizações favoritas. Podem ter pensado “O que é que uma coisa tem a ver com
a outra?”. No entanto, a responsabilidade cívica cabe tanto às instituições
quanto aos cidadãos como indivíduos.
Em 2019, o facto do Museu Benaki em
Atenas ter apresentado a exposição “Roads of Arabia: Archaeological Treasures
from Saudi Arabia”, com o apoio da Comissão Saudita para o Turismo e o Património
Cultural (uma organização governamental), foi uma outra razão de desconforto
para mim. Quando, em Abril daquele ano, li no Guardian sobre
a execução de 37 pessoas (36 foram decapitadas e 1 foi crucificada), além de
comentar no Twitter, também enviei um e-mail ao museu. Partindo do pressuposto
de que essas práticas do regime saudita, e outras anteriores, não lhes eram
desconhecidas, consciente de que essas exposições servem de relações públicas
para os seus mecenas, perguntei qual era a posição do museu diante dessa
barbárie e quais os pontos que tinham sido considerados positivos nessa
colaboração.
Após alguma insistência devido à ausência de resposta, o
director académico do museu, George Manginis, respondeu, em primeiro lugar
agradecendo-me por ter partilhado com eles a minha opinião sobre a
administração da justiça na Arábia Saudita. Esta introdução deu, da forma como
eu a percepcionei, um tom irónico a todo o e-mail - estava mais que claro, obviamente,
que não tinha sido essa a principal intenção de meu contacto com eles ou a essência
do meu questionamento.
O director académico do Museu Benaki informou-me que a
missão dos museus é apresentar as múltiplas manifestações da cultura mundial,
promovendo o entendimento mútuo; reconheceu um papel importante no trabalho da
Comissão Saudita para o Turismo e o Património Cultural na educação do público
saudita e na promoção da arqueologia e da arte pré-islámicas e islámica fora
das fronteiras do seu país; acrescentou que a exposição visava também valorizar
a educação cultural no país amigo, através de uma leitura especial do material
arqueológico, com ênfase na tradição helenística; concluiu que a equipa do
museu estava convicta de que a exposição e publicação "Roads of
Arabia" conseguiram "alargar o leque de conhecimentos sobre a Arábia
Saudita na Grécia e abrir mais um canal de comunicação entre os dois países,
que durante décadas mantêm excelentes relações diplomáticas.” Pode-se
perguntar: Que tipo de conhecimento a respeito da Arábia Saudita? E que tipo de
canal de comunicação, comunicação de quê?
Voltei a pensar nessas experiências anteriores ao ler as
declarações de dois museus britânicos e um francês quando questionados sobre a
ética de sua colaboração com empresas estatais na China, considerando o extenso
histórico de abusos de direitos humanos por parte do governo. De acordo com The Art Newspaper:
Eles dizem que partilhar as
suas colecções e conhecimentos desta forma “pode ajudar a fomentar a tolerância
e a curiosidade” (Pompidou); “Gera maior entendimento entre as culturas e
comunidades globais” (V&A) e ajuda a “aumentar o acesso do povo chinês às
possibilidades da arte internacional” (Tate).
“Entendimento mútuo”, “tolerância”, “conhecimento”:
palavras-chave (palavras na moda) na retórica de muitos museus quando
questionados sobre o seu papel político e social. Apesar dessa retórica, no
entanto, a sua prática e exposições raramente provam que este seja um objectivo
verdadeiro ou consciente. Afinal, de que forma a descrição de objectos (que é o
que muitos museus basicamente fazem) promove algum desses valores e princípios?
Como é que o silêncio diplomático face à barbárie beneficia as pessoas que
vivem sob regimes brutais? Como é que isso melhora as suas vidas? Como é que isso
faz com que outras pessoas, noutros países, desenvolvam um pensamento mais
crítico em relação à política e às suas responsabilidades cívicas? Como tinha
questionado o Museu Benaki,
Que cultura (ou barbárie), que
conhecimento (ou ignorância) vocês promovem ao aceitar dinheiro de um regime
islamista brutal? E, o mais importante, desde quando é que a cultura não tem
nada a ver com a administração da justiça?
Não foi o caso da exposição do Museu Benaki, mas não se
deve ignorar também os benefícios financeiros para os museus que colaboram, por
exemplo, com o governo chinês, principalmente num momento em que as coisas
estão bastante difíceis nessa frente.
Serge Lasvignes, Emmanuel Macron e o Presidente da West Bund chairman Fong Shizhong na inauguração do Centre Pompidou West Bund. Foto: Hector Retamal / Pool via Reuters |
Com referência, mais uma vez, ao artigo do The Art
Newspaper, o director executivo do Human Rights Watch, Kenneth Roth, argumentou
que o favorecimento da diplomacia silenciosa pelos políticos ocidentais na
China "não faz nada para envergonhar um governo que busca aceitação como
membro legítimo e respeitado da comunidade internacional. Em vez disso, as
fotos de funcionários sorridentes combinadas com o silêncio público sobre os
direitos humanos são um sinal para o mundo - e para o povo chinês - que o
visitante VIP é indiferente à repressão de Pequim.”
Não se trata apenas do papel dos políticos, é claro. Neste
blog, temos escrito extensivamente sobre o papel político das organizações
culturais. As palavras de Desmond Tutu - “Se permanece neutro em situações de
injustiça, escolheu o lado do opressor” - devem ecoar em cada um de nós, tanto
como cidadãos individuais como profissionais da cultura, especialmente quem
lidera organizações culturais. E devemos estar conscientes de que, hoje em dia,
muitas pessoas nas nossas sociedades esperam que tomemos uma posição - o
exemplo mais recente é o de organizações culturais nos Estados Unidos face ao
movimento Black Lives Matter (facto também comprovado com dados por Colleen
Dilenschneider no caso do posicionamento do MoMA contra o chamado “Muslim ban”
do Presidente americano em 2017 - leia aqui).
Isto torna-se também evidente através de referências
concretas no artigo do The Art Newspaper. Geoffrey Nice (um promotor britânico
que presidiu o China Tribunal in
London, um painel independente criado para investigar evidências de que
o estado chinês está a remover órgãos de prisioneiros do Falun Gong enquanto
ainda estão vivos) proferiu a sua sentença final em Junho de 2019, dizendo:
Os governos e qualquer pessoa
que interaja de forma substancial com a PRC, incluindo ... estabelecimentos de
ensino [e] artes, devem agora reconhecer que estão ... a interagir com um estado
criminoso.
O artista chinês dissidente Ai Weiwei também foi citado:
Qualquer estado ou
organização, empresarial ou cultural, envolvidos com um estado com um histórico
tão pobre em matéria de direitos humanos, com ideias divisórias sobre os
valores mais importantes como a liberdade de expressão, torna-se parte deste
poder. Se não questionam esse poder, tornam-se cúmplices.
Tomar posição, assumir um papel político, não é fácil para
as organizações culturais. Existem muitos factores e relações que precisam de ser
considerados, pesados, equilibrados. Dito isto, o silêncio não pode ser uma
opção. Principalmente quando, com muita frequência, o silêncio se relaciona com
benefícios pessoais (permanecer num cargo) ou financeiros. Estaremos a honrar os
valores que dizemos que abraçamos e promovemos?
Mais neste blog:
Estamos com as abelhas ou com os lobos?
Do silêncio para a hashtag para a tomada de posição
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