Wednesday, 28 August 2019

O desconforto da mudança: será a “fragilidade branca” a nossa principal preocupação?

Imagem reirada de Cyprus Mail.


Num post no ano passado, Nathan “Mudyi” Sentence (Australian Museum) escreveu sobre o seu envolvimento num programa do seu museu para estudantes universitários que discutiu as Gerações Roubadas (a remoção, ao longo do século 20, de crianças de descendência aborígine pelo governo australiano e missões da igreja) e o trauma intergeracional. “Após o programa, um dos alunos comentou anonimamente no formulário de avaliação que sentiu que estava a ser repreendido e que se sentiu mal por ser branco. Achei que essa era uma resposta estranha, quando o assunto era uma realidade e um problema que afecta muitas pessoas das Primeiras Nações, mas ele optou por se afastar porque isso o deixava desconfortável. Achei preocupante, porque a fragilidade dos brancos acabará sempre por se meter no caminho do envolvimento dos colonos em programas que desafiam as estruturas coloniais que os beneficiam. Fiquei preocupado com o facto da fragilidade branca ser mais preocupante para algumas pessoas do que a verdade.”

A 'verdade'… No seu livro Για τo “νόημα” της πολιτικής (Sobre o “significado” da política), o filósofo grego Christos Yannaras explica a palavra grega α-λήθεια (verdade) como o “não esquecido”, “não oculto” (p.46). Assim, verdade significa revelação, vir à luz e refere-se a uma experiência vivida e não simplesmente a um "significado correcto" (como sugere o veritas em latim). Desta forma, podem coexistir muitas verdades numa sociedade. Viver em sociedade significa fazer algo junto com os outros, adquirir conhecimento participando, fazer parte da mesma experiência e conhecimento (p. 106). Além disso, a democracia, de acordo com o paradigma grego, não é o alcance de um 'o quê', mas o objectivo de um 'como', o desafio de uma conquista, sob a condição da dinâmica e da indefinição das relações criadas na sociedade (p.80). Todos estes conceitos misturam-se na minha cabeça e mostram-me que viver numa sociedade democrática significa que os cidadãos participam (não se trata de um direito individual para os antigos gregos, como é visto hoje, mas de uma obrigação colectiva), aprender uns com os outros e uns sobre os outros, partilhar experiências, aprender a lidar com as verdades dos outros que podem confrontar as suas verdades, e conseguir realizar coisas em conjunto. A arte de viver juntos é a arte da política e é um acto de sobrevivência.

Imagem: Dumbartung Aboriginal Corporation (retirada de abc.net.au)

O jornalista francês e membro do Parlamento Europeu Raphaël Glucksmann, no seu livro Les enfants du vide: De l´impasse individualiste au reveil citoyen (Os filhos do vazio: Do impasse individualista ao despertar do cidadão), discute a sociedade do isolamento e o quanto isso tem afectado as nossas democracias: pessoas que vivem confinadas e isoladas nas suas casas, cuja visão do mundo é moldada pelos meios de comunicação que as expõem a uma ideia de perigos cada vez maiores para o seu bem-estar e os seus benefícios, perigos esses representados pelo “outro”; essas pessoas não fazem parte de entidades colectivas nem contribuem para causas comuns e anseiam por um líder-salvador que reconheça as suas dificuldades e que as proteja. Glucksmann critica as políticas identitárias por transformar as lutas políticas numa questão de reconhecimento da identidade, provocando o aumento na consciencialização da identidade também entre os “grupos maioritários” (p.61 na edição grega) e substituindo a busca da igualdade para todos pela confirmação dos direitos de cada um (p.63). Ele argumenta que, para que as pessoas saiam do seu isolamento e se tornem novamente cidadãos activos, a nossa democracia precisa dar um passo atrás e concentrar-se novamente em causas maiores comuns e não nas diferenças individuais (por exemplo, sugere Glucksmann, na mudança climática).

É claro que existem várias causas importantes que juntam pessoas com ideais e valores comuns e faz sentido continuar a promovê-las. A crítica contra as políticas identitárias, no entanto, fez-me pensar sobre os termos de participação de pessoas diferentes nessas causas. Todos temos o mesmo ponto de partida? As mesmas oportunidades? Podemos esperar que a nossa participação seja igualmente reconhecida e que quaisquer benefícios sejam igualmente partilhados e experienciados?

Pouco tempo depois de ler o livro de Glucksmann, encontrei o artigo de Francis Fukuyama “Against Identity Politics: The New Tribalism and the Crisis of Democracy” (Contra as políticas identitárias: o novo tribalismo e a crise da democracia), que me ajudou a entender melhor os argumentos contra as políticas identitárias. Fukuyama atribui o apoio dado em todo o mundo a líderes autoritários que usam técnicas fascistas não apenas às mudanças económicas e tecnológicas da globalização, mas também ao surgimento das políticas identitárias. Argumenta que, em muitas democracias, a esquerda concentra-se menos na criação de uma ampla igualdade económica e mais na promoção dos interesses de uma ampla variedade de grupos marginalizados (como minorias étnicas, imigrantes e refugiados, mulheres e pessoas LGBT), resultando na fraturação das sociedades democráticas em segmentos baseados em identidades cada vez mais estreitas, ameaçando a possibilidade de deliberação e acção colectiva da sociedade como um todo. “A menos que essas democracias liberais possam voltar a um entendimento mais universal da dignidade humana, elas irão condenar-se a si mesmas - e ao mundo - ao conflito contínuo”, escreve Fukuyama.

Ao mesmo tempo, ele reconhece que “a igualdade perante a lei não resulta em igualdade económica ou social. A discriminação continua a existir contra uma ampla variedade de grupos, e as economias de mercado produzem resultados de grandes desigualdades. (…) E as minorias continuaram a lidar com o ónus da discriminação, do preconceito, do desrespeito e da invisibilidade”. É exactamente por isso que tenho dificuldade em aceitar o argumento de que as políticas identitárias (ou seja, conhecer melhor o outro e a sua experiência vivida) estejam a fracturar a nossa sociedade persistentemente fracturada, injusta e discriminatória, desviando, diz Fukuyama, “a atenção dos grupos maiores cujos problemas sérios foram ignorados” e impedindo a nossa possibilidade de agir colectivamente.

Quem são realmente os grupos maiores a que Fukuyama se refere? Quem são as pessoas que se sentiram deixadas de fora, invisíveis, ameaçadas pelo surgimento de “outras identidades” e pela reivindicação dos seus direitos? Quem foram as pessoas que se sentiram estrangeiras no seu próprio país e votaram em Donald Trump (vejam os resultados de uma pesquisa pós-eleitoral)? Será que são as pessoas brancas e que todos estes argumentos contra as políticas identitárias têm a ver com o seu (nosso) desconforto?

Foto: Laura Baris retirada de People's Pundit Daily.

Vamos tomar as mulheres como exemplo (uma das “minorias”, “grupos marginalizados” cujas lutas identitárias é considerado que contribuem para a actual fragmentação da sociedade) e vamos manter, por enquanto, esse argumento apenas entre homens brancos e mulheres brancas. Penso que o movimento #MeToo em relação ao assédio sexual e à violência sexual demonstrou claramente o pouco efeito que a luta pelos direitos das mulheres tem tido na mentalidade de muitos homens (e mulheres). As declarações de “quase desculpa” de pessoas como Joe Biden ou Placido Domingo  em relação a acusações de assédio mostram-nos, e Fukuyama concorda, que pessoas “de fora” (ou culturas dominantes) “frequentemente não percebem o dano que causam com as suas acções”. "No entanto, reconheço que as regras e padrões pelos quais somos - e devemos ser - avaliados hoje são muito diferentes do que eram no passado", disse Placido Domingo. Serão, realmente, tão diferentes ou, antes, são hoje mais contestados e denunciados?

Acredito que o que é diferente hoje é que “outras” pessoas têm voz e confrontam mentalidades e culturas dominantes, criando desconforto entre aqueles que não estavam acostumados a ser questionados. Não vou cometer o erro de Francis Fukuyama de comparar os efeitos dos movimentos pacíficos com aqueles de contestações violentas (que é o que ele faz quando discute o activismo negro de Martin Luther King, dos Black Panthers ou do Nation of Islam). Vou centrar-me nos movimentos pacíficos e perguntar: Até onde nos têm levado? Quão abertos estamos para ouvir o “outro”? Qual é o poder de uma voz quando ninguém ouve?

“As políticas identitárias visam mudar a cultura e comportamentos trazendo benefícios materiais reais para muitas pessoas”, escreve Fukuyama, ao mesmo tempo em que critica “a tendência das políticas identitárias de se concentrar em questões culturais que desviaram energia e a atenção do pensamento sério” em relação à desigualdade económica. Mas isto terá apenas a ver com a desigualdade económica? Essa é a única preocupação das pessoas que continuam a ser discriminadas, perseguidas, violentadas, deixadas de lado, silenciadas, invisibilizadas? Podemos lutar juntos se não chamarmos as coisas pelo nome, se não soubermos quem é a pessoa ao nosso lado, qual é a sua experiência vivida no dia-a-dia? Podemos agir colectivamente se alguns de nós continuarmos observando "de fora" em prol do nosso conforto? Num país como os EUA, embora grande atenção tenha sido dada, de acordo com Fukuyama, à promoção de uma “identidade nacional baseada nas crenças” (construída não em torno de características pessoais partilhadas, experiências vividas, laços históricos ou convicções religiosas, mas sim em torno de um núcleo de valores e crenças), as congressistas muçulmanas não têm que “provar” todos os dias que são verdadeiras americanas, verdadeiras patriotas?

Graças ao artigo de Fukuyama, entendo melhor o argumento contra as políticas identitárias. E continuo a discordar dele. No século 21, desejo ver comunidades de cidadãos com maturidade, que percebam que a saúde de uma democracia liberal é baseada no confronto de ideias e, inevitavelmente, no desconforto. Desejo ver comunidades que abraçam esse desconforto e embarcam na busca pela verdade e pelo conhecimento. Uma utopia?

Embora eu não considere o politiciamente correcto uma ameaça à liberdade de expressão ou as políticas identitárias como responsáveis pelo surgimento de identidades de extrema direita, estou preocupada com os excessos e com a falta de empatia. Como já escrevi, silenciar uma pessoa que usou o que hoje é considerado a palavra errada antes de a deixar terminar o que tem a dizer e antes de entender o contexto em que ela fala (leia aqui); ou considerar que todos deveriam hoje estar informados e, em vez de nos repetirmos mais uma vez e explicarmos mais uma vez, atiramos-lhes simplesmente “Verifica os teus privilégios” (leia aqui), estas não são formas de aprender em conjunto, participando. Ninguém aprende nada, todos se sentem violentados e acabamos virando as costas uns para os outros, afastamo-nos.

Debate da Acesso Cultura  (Foto: Pedro Faro/ Casa-Museu Júlio Pomar)

Tenho pensado sobre o caminho a seguir, como podemos criar espaços onde possamos conhecer-nos uns aos outros, aprender uns sobre os outros, ter a liberdade de partilhar os nossos medos e preocupações e trabalhar em conjunto nas causas que nos são comuns. Talvez a base para tais encontros possa ser construída sobre os valores comuns. Não com a intenção de desconsiderar as experiências vividas individuais das minorias, como sugere Fukuyama, em prol do conforto dos muitos, mas com o objectivo de criar um espaço confortável para discutir questões desconfortáveis.

O Happy Museum Project, no Reino Unido, desenvolveu uma iniciativa chamada “Values work for museums”, apoiando organizações artísticas e culturais a usar uma abordagem baseada em valores para o seu trabalho com públicos e comunidades. Eles realizaram vários workshops, incluindo um focado no papel dos valores na abordagem à polarização social (e um especificamente sobre “Como o sector cultural pode responder ao referendo?”). Aprendi sobre isso através da Esme Ward, directora do Manchester Museum, que participou (sim, parece que há diretores de museus que tiram tempo para participar em workshops…) O Manchester Museum criou o guia Discover and Share – Ways to promote positive values inarts and cultural settings, baseado na colaboração ao longo de um ano com o Happy Museum Project. Esta será a minha próxima leitura, juntamente com Words Matter, uma vez que Wayne Modest do Troppenmuseum estará de volta a Lisboa a 26 de Setembro para discutir o assunto.

A mudança traz preocupação e desconforto a todos. Isso nós sabemos e devemos construir a nossa estratégia de comunicação em torno deste facto. Pouco será alcançado, no entanto, e pouco tem sido alcançado, se continuarmos a evitar certas realidades e se nos preocuparmos principalmente com o conforto dos muitos. As políticas identitárias não são responsáveis pela ascensão da extrema direita. Mas sabemos que a extrema direita ascende e brilha alimentando medos baseados na identidade e prometendo protecção. A identidade é fundamental na existência de todos, tanto de grupos maioritários quanto minoritários. Como diz Raphaël Glucksmann, podemos “Retomar o controlo” (que é o slogan do Brexit) ou, acrescento eu, podemos “tornar-nos grandes novamente” (o slogan de Trump), e redefinir o “nós”, mas sem excluir o “outro”, sem xenofobia e sem bodes expiatórios. Sim, podemos. Mas primeiro precisamos de saber quem são os “outros”, onde estiveram todo este tempo, de onde vieram e porquê. É assim que podemos criar um “nós”, através do conhecimento, não através da ignorância nem através da arrogância.


Mais neste blog:







Mais fontes:

Gravação do seminário da Acesso Cultura “Descolonizar osmuseus: isto na prática …?”

E Pluribus Unum? The Fight Over Identity Politics (2019). By Stacey Y. Abrams; John Sides, Michael Tesler, and Lynn Vavreck; Jennifer A. Richeson; and Francis Fukuyama

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