Imagem reirada de Cyprus Mail. |
Num post no ano passado, Nathan “Mudyi” Sentence (Australian
Museum) escreveu sobre o seu envolvimento num programa do seu museu para
estudantes universitários que discutiu as Gerações Roubadas (a remoção, ao
longo do século 20, de crianças de descendência aborígine pelo governo
australiano e missões da igreja) e o trauma
intergeracional. “Após o programa, um dos alunos comentou anonimamente no
formulário de avaliação que sentiu que estava a ser repreendido e que se sentiu
mal por ser branco. Achei que essa era uma resposta estranha, quando o assunto
era uma realidade e um problema que afecta muitas pessoas das Primeiras Nações,
mas ele optou por se afastar porque isso o deixava desconfortável. Achei
preocupante, porque a fragilidade dos brancos acabará sempre por se meter no
caminho do envolvimento dos colonos em programas que desafiam as estruturas
coloniais que os beneficiam. Fiquei preocupado com o facto da fragilidade
branca ser mais preocupante para algumas pessoas do que a verdade.”
A 'verdade'… No seu livro Για τo “νόημα” της πολιτικής
(Sobre o “significado” da política), o filósofo grego Christos Yannaras explica
a palavra grega α-λήθεια (verdade) como o “não esquecido”, “não oculto”
(p.46). Assim, verdade significa revelação, vir à luz e refere-se a uma
experiência vivida e não simplesmente a um "significado correcto"
(como sugere o veritas em latim). Desta forma, podem coexistir muitas
verdades numa sociedade. Viver em sociedade significa fazer algo junto com os
outros, adquirir conhecimento participando, fazer parte da mesma experiência e
conhecimento (p. 106). Além disso, a democracia, de acordo com o paradigma
grego, não é o alcance de um 'o quê', mas o objectivo de um 'como', o desafio
de uma conquista, sob a condição da dinâmica e da indefinição das relações criadas
na sociedade (p.80). Todos estes conceitos misturam-se na minha cabeça e
mostram-me que viver numa sociedade democrática significa que os cidadãos
participam (não se trata de um direito individual para os antigos gregos, como é
visto hoje, mas de uma obrigação colectiva), aprender uns com os outros e uns sobre
os outros, partilhar experiências, aprender a lidar com as verdades dos outros
que podem confrontar as suas verdades, e conseguir realizar coisas em conjunto.
A arte de viver juntos é a arte da política e é um acto de sobrevivência.
Imagem: Dumbartung Aboriginal Corporation (retirada de abc.net.au) |
O jornalista francês e membro do Parlamento Europeu Raphaël
Glucksmann, no seu livro Les enfants du vide: De l´impasse individualiste au reveil
citoyen (Os filhos do vazio: Do impasse individualista ao despertar
do cidadão), discute a sociedade do isolamento e o quanto isso tem afectado as nossas
democracias: pessoas que vivem confinadas e isoladas nas suas casas, cuja visão
do mundo é moldada pelos meios de comunicação que as expõem a uma ideia de
perigos cada vez maiores para o seu bem-estar e os seus benefícios, perigos
esses representados pelo “outro”; essas pessoas não fazem parte de entidades
colectivas nem contribuem para causas comuns e anseiam por um líder-salvador
que reconheça as suas dificuldades e que as proteja. Glucksmann critica as
políticas identitárias por transformar as lutas políticas numa questão de
reconhecimento da identidade, provocando o aumento na consciencialização da
identidade também entre os “grupos maioritários” (p.61 na edição grega) e
substituindo a busca da igualdade para todos pela confirmação dos direitos de
cada um (p.63). Ele argumenta que, para que as pessoas saiam do seu isolamento
e se tornem novamente cidadãos activos, a nossa democracia precisa dar um passo
atrás e concentrar-se novamente em causas maiores comuns e não nas diferenças
individuais (por exemplo, sugere Glucksmann, na mudança climática).
É claro que existem várias causas importantes que juntam
pessoas com ideais e valores comuns e faz sentido continuar a promovê-las. A
crítica contra as políticas identitárias, no entanto, fez-me pensar sobre os
termos de participação de pessoas diferentes nessas causas. Todos temos o mesmo
ponto de partida? As mesmas oportunidades? Podemos esperar que a nossa
participação seja igualmente reconhecida e que quaisquer benefícios sejam igualmente
partilhados e experienciados?
Pouco tempo depois de ler o livro de Glucksmann, encontrei o
artigo de Francis Fukuyama “Against Identity Politics: The New Tribalism and the Crisis of Democracy” (Contra as políticas identitárias: o novo
tribalismo e a crise da democracia), que me ajudou a entender melhor os
argumentos contra as políticas identitárias. Fukuyama atribui o apoio dado em
todo o mundo a líderes autoritários que usam técnicas fascistas não apenas às
mudanças económicas e tecnológicas da globalização, mas também ao surgimento das
políticas identitárias. Argumenta
que, em muitas democracias, a esquerda concentra-se menos na criação de uma
ampla igualdade económica e mais na promoção dos interesses de uma ampla
variedade de grupos marginalizados (como minorias étnicas, imigrantes e
refugiados, mulheres e pessoas LGBT), resultando na fraturação das sociedades
democráticas em segmentos baseados em identidades cada vez mais estreitas,
ameaçando a possibilidade de deliberação e acção colectiva da sociedade como um
todo. “A menos que essas democracias liberais possam voltar a um entendimento
mais universal da dignidade humana, elas irão condenar-se a si mesmas - e ao
mundo - ao conflito contínuo”, escreve Fukuyama.
Ao mesmo tempo, ele reconhece que “a igualdade perante a
lei não resulta em igualdade económica ou social. A discriminação continua a
existir contra uma ampla variedade de grupos, e as economias de mercado
produzem resultados de grandes desigualdades. (…) E as minorias continuaram a
lidar com o ónus da discriminação, do preconceito, do desrespeito e da invisibilidade”.
É exactamente por isso que tenho dificuldade em aceitar o argumento de que as políticas
identitárias (ou seja, conhecer melhor o outro e a sua experiência vivida) estejam
a fracturar a nossa sociedade persistentemente fracturada, injusta e discriminatória,
desviando, diz Fukuyama, “a atenção dos grupos maiores cujos problemas sérios
foram ignorados” e impedindo a nossa possibilidade de agir colectivamente.
Quem são realmente os grupos maiores a que Fukuyama se
refere? Quem são as pessoas que se sentiram deixadas de fora, invisíveis,
ameaçadas pelo surgimento de “outras identidades” e pela reivindicação dos seus
direitos? Quem foram as pessoas que se sentiram estrangeiras no seu próprio
país e votaram em Donald Trump (vejam os resultados de uma pesquisa pós-eleitoral)?
Será que são as pessoas brancas e que todos estes argumentos contra as
políticas identitárias têm a ver com o seu (nosso) desconforto?
Foto: Laura Baris retirada de People's Pundit Daily. |
Vamos tomar as mulheres como exemplo (uma das “minorias”,
“grupos marginalizados” cujas lutas identitárias é considerado que contribuem
para a actual fragmentação da sociedade) e vamos manter, por enquanto, esse
argumento apenas entre homens brancos e mulheres brancas. Penso que o movimento
#MeToo em relação ao assédio sexual e à violência sexual demonstrou claramente
o pouco efeito que a luta pelos direitos das mulheres tem tido na mentalidade
de muitos homens (e mulheres). As declarações de “quase desculpa” de pessoas
como Joe Biden ou Placido Domingo em relação a acusações de assédio mostram-nos,
e Fukuyama concorda, que pessoas “de fora” (ou culturas dominantes) “frequentemente
não percebem o dano que causam com as suas acções”. "No entanto, reconheço
que as regras e padrões pelos quais somos - e devemos ser - avaliados hoje são
muito diferentes do que eram no passado", disse Placido Domingo. Serão,
realmente, tão diferentes ou, antes, são hoje mais contestados e denunciados?
Acredito que o que é diferente hoje é que “outras” pessoas
têm voz e confrontam mentalidades e culturas dominantes, criando desconforto
entre aqueles que não estavam acostumados a ser questionados. Não vou cometer o
erro de Francis Fukuyama de comparar os efeitos dos movimentos pacíficos com aqueles
de contestações violentas (que é o que ele faz quando discute o activismo negro
de Martin Luther King, dos Black Panthers ou do Nation of Islam). Vou centrar-me
nos movimentos pacíficos e perguntar: Até onde nos têm levado? Quão abertos
estamos para ouvir o “outro”? Qual é o poder de uma voz quando ninguém ouve?
“As políticas identitárias visam mudar a cultura e
comportamentos trazendo benefícios materiais reais para muitas pessoas”,
escreve Fukuyama, ao mesmo tempo em que critica “a tendência das políticas identitárias
de se concentrar em questões culturais que desviaram energia e a atenção do
pensamento sério” em relação à desigualdade económica. Mas isto terá apenas a
ver com a desigualdade económica? Essa é a única preocupação das pessoas que
continuam a ser discriminadas, perseguidas, violentadas, deixadas de lado,
silenciadas, invisibilizadas? Podemos lutar juntos se não chamarmos as coisas
pelo nome, se não soubermos quem é a pessoa ao nosso lado, qual é a sua experiência
vivida no dia-a-dia? Podemos agir colectivamente se alguns de nós continuarmos observando
"de fora" em prol do nosso conforto? Num país como os EUA, embora
grande atenção tenha sido dada, de acordo com Fukuyama, à promoção de uma
“identidade nacional baseada nas crenças” (construída não em torno de
características pessoais partilhadas, experiências vividas, laços históricos ou
convicções religiosas, mas sim em torno de um núcleo de valores e crenças), as
congressistas muçulmanas não têm que “provar” todos os dias que são verdadeiras
americanas, verdadeiras patriotas?
Graças ao artigo de Fukuyama, entendo melhor o argumento
contra as políticas identitárias. E continuo a discordar dele. No século 21,
desejo ver comunidades de cidadãos com maturidade, que percebam que a saúde de
uma democracia liberal é baseada no confronto de ideias e, inevitavelmente, no
desconforto. Desejo ver comunidades que abraçam esse desconforto e embarcam na
busca pela verdade e pelo conhecimento. Uma utopia?
Embora eu não considere o politiciamente correcto uma
ameaça à liberdade de expressão ou as políticas identitárias como responsáveis
pelo surgimento de identidades de extrema direita, estou preocupada com os excessos e com a falta de empatia.
Como já escrevi, silenciar uma pessoa que usou o que hoje é considerado a
palavra errada antes de a deixar terminar o que tem a dizer e antes de entender
o contexto em que ela fala (leia aqui); ou
considerar que todos deveriam hoje estar informados e, em vez de nos repetirmos
mais uma vez e explicarmos mais uma vez, atiramos-lhes simplesmente “Verifica os
teus privilégios” (leia aqui),
estas não são formas de aprender em conjunto, participando. Ninguém aprende
nada, todos se sentem violentados e acabamos virando as costas uns para os
outros, afastamo-nos.
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Tenho pensado sobre o caminho a seguir, como podemos criar
espaços onde possamos conhecer-nos uns aos outros, aprender uns sobre os
outros, ter a liberdade de partilhar os nossos medos e preocupações e trabalhar
em conjunto nas causas que nos são comuns. Talvez a base para tais encontros
possa ser construída sobre os valores comuns. Não com a intenção de
desconsiderar as experiências vividas individuais das minorias, como sugere
Fukuyama, em prol do conforto dos muitos, mas com o objectivo de criar um
espaço confortável para discutir questões desconfortáveis.
O Happy Museum Project, no Reino Unido, desenvolveu uma
iniciativa chamada “Values work for museums”,
apoiando organizações artísticas e culturais a usar uma abordagem baseada em
valores para o seu trabalho com públicos e comunidades. Eles realizaram vários
workshops, incluindo um focado no papel dos valores na abordagem à polarização
social (e um especificamente sobre “Como o sector cultural pode responder ao
referendo?”). Aprendi sobre isso através da Esme Ward, directora do Manchester
Museum, que participou (sim, parece que há diretores de museus que tiram tempo
para participar em workshops…) O Manchester Museum criou o guia Discover and Share – Ways to promote positive values inarts and cultural settings,
baseado na colaboração ao longo de um ano com o Happy Museum Project. Esta será
a minha próxima leitura, juntamente com Words Matter, uma
vez que Wayne Modest do Troppenmuseum estará de volta a Lisboa a 26 de Setembro
para discutir o assunto.
A mudança traz preocupação e desconforto a todos. Isso nós
sabemos e devemos construir a nossa estratégia de comunicação em torno deste
facto. Pouco será alcançado, no entanto, e pouco tem sido alcançado, se
continuarmos a evitar certas realidades e se nos preocuparmos principalmente
com o conforto dos muitos. As políticas identitárias não são responsáveis pela
ascensão da extrema direita. Mas sabemos que a extrema direita ascende e brilha
alimentando medos baseados na identidade e prometendo protecção. A identidade é
fundamental na existência de todos, tanto de grupos maioritários quanto
minoritários. Como diz Raphaël Glucksmann, podemos “Retomar o controlo” (que é
o slogan do Brexit) ou, acrescento eu,
podemos “tornar-nos grandes novamente” (o slogan de Trump), e redefinir o
“nós”, mas sem excluir o “outro”, sem xenofobia e sem bodes expiatórios. Sim,
podemos. Mas primeiro precisamos de saber quem são os “outros”, onde estiveram
todo este tempo, de onde vieram e porquê. É assim que podemos criar um “nós”,
através do conhecimento, não através da ignorância nem através da arrogância.
Mais neste blog:
Mais fontes:
Gravação do seminário da Acesso Cultura “Descolonizar osmuseus: isto na prática …?”
E Pluribus Unum? The Fight Over Identity Politics (2019). By Stacey Y. Abrams; John Sides, Michael Tesler, and Lynn Vavreck; Jennifer A. Richeson; and Francis Fukuyama
E Pluribus Unum? The Fight Over Identity Politics (2019). By Stacey Y. Abrams; John Sides, Michael Tesler, and Lynn Vavreck; Jennifer A. Richeson; and Francis Fukuyama
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