Os jornalistas do Público Daniel Dias e Mariana Duarte assinaram um artigo intitulado “Está a cultura em Portugal a dar resposta ao que acontece na Palestina?”. Não me lembro de alguma vez os meios de comunicação social em Portugal terem questionado a resposta que a Cultura estaria a dar a um assunto político da actualidade. Os jornalistas afirmam que a sua peça vem à boleia do novo trabalho de Joana Craveiro sobre a Palestina. No entanto, conhecendo o trabalho político de Joana Craveiro/Teatro do Vestido e de outros artistas, não me lembro de haver este tipo questionamento noutras ocasiões. Desconfio, por isso, que este é um dos resultados do comunicado do Teatro Nacional D. Maria II (TNDMII) sobre Gaza e das reacções que provocou.
Lembro-me de escrever em 2017 a propósito do
incêndio em Pedrógão Grande: “Uma
tragédia nacional: o que é que ‘a cultura’ tem a ver com ela?”,
escrutinando a resposta (e, sobretudo, a não resposta) das organizações
culturais ao trauma que o país estava a experienciar (e aqui estamos outra vez
em Agosto de 2025…). Lembro-me de escrever em Março de 2022 “A
guerra chegou aos museus: sobre o ‘excepcionalismo’ da cultura”, em
resposta a colegas que lamentavam o facto da invasão russa à Ucrânia estar a
ter um impacto sobre os museus e as suas colecções, mas sem questionar ou referir
nem o papel de algumas dessas organizações na propaganda de Kremlin nem as
demissões de alguns colegas russos (nessa altura, defendi um boicote cultural, aqui
e aqui).
No mês passado, escrevendo sobre uma
exposição que contava a história de um bairro - hoje desmantelado - de ciganos
na Lituânia, pensei no programa do
Victoria&Albert Museum “Rapid Response Collecting” e questionei-me se
os museus de Loures, ou outros, fariam algum tipo de recolha que permitiria contar
as histórias das pessoas que viram as suas barracas a serem demolidas pela
câmara municipal no bairro de Talude Militar. “Estarei a sonhar?”, pensei…
Voltando, por isso, ao artigo do Público, que
questiona a resposta da cultura à situação em Gaza, considero o questionamento
muito bem-vindo e muito necessário, para o próprio sector da Cultura. Reagi
muito rapidamente ao comunicado do TNDMII, muito perturbada com alguns
comentários, mas, sobretudo, com a esperança que esse gesto pudesse despoletar
uma reflexão urgente sobre o papel político das organizações culturais (tema também
do meu livro “O
que temos a ver com isto? O papel político das organizações culturais”).
Esperei pelas reflexões públicas dos profissionais do sector que pudessem
alimentar o diálogo. Não contando com comentários nas redes sociais, identifiquei
(apenas) duas críticas mais estruturadas.
Primeiro, a 31 de Julho, houve a publicação do Teatro
do Vestido no Instagram. Considerou a declaração do TNDMII asséptica, extemporânea,
tardia – lembrando os 77 anos de ocupação da Palestina e os 31 anos dos Acordos
de Oslo. Criticou a ausência de palavras como “genocídio”, “ocupação”, “apartheid”,
“limpeza étnica”. Considerou ainda que o comunicado não ajudou a criar diálogos
e esclarecimentos. E, numa nota final, manifestou apoio às trabalhadoras e
trabalhadores do teatro, que terão feito pressão ao longo do último ano e nove
meses e cujos esforços terão resultado num comunicado escrito pela direcção.
Concordando com algumas das fragilidades que o
Teatro do Vestido aponta ao comunicado do TNDMII, houve dois pensamentos
imediatos ao ler esse texto. Em primeiro lugar, vi um ataque a uma grande
instituição cultural pública que procura tomar, pela primeira vez, posição
sobre um assunto da actualidade política (ao contrário do que o texto refere, fê-lo
como equipa e não como direcção; não confundir também com a forma inspiradora
como Tiago Rodrigues, no tempo em que era director artístico do TNDMII, tomava
posição sobre diversos temas). Achei, por isso, a crítica feroz, quando o Teatro
do Vestido nunca exigiu, que eu saiba, que as instituições culturais públicas
quebrassem o seu (continuado) silêncio sobre Gaza e sobre outros assuntos da
actualidade relevantes para a sociedade. Ou seja, como colegas, deixamos em paz
as instituições que se calam e atacamos aquela que se pronuncia? Em segundo
lugar - sobretudo com a referência às muitas décadas de ocupação, de tragédia e
de luta – vi uma necessidade de afirmação de superioridade moral, que um colega
pôs noutras palavras num comentário no Facebook: “Nós já cá estávamos, há
muito”. É verdade. E então? O comunicado do TNDMII, ao contrário do que se diz,
criou diálogos e esclarecimentos – infelizmente, de curta duração, por isso,
cabe-nos dar continuidade.
Dias depois, a 2 de Agosto, a nossa colega e
artista Maria Gil escreveu no Público um artigo de opinião intitulado “O
impulso moral, Gaza e o Teatro Nacional D. Maria II”. Este texto pareceu-me
menos cuidado e, para ser sincera, menos opinativo. Maria Gil refere-se, sem comentar,
às críticas de “gaslighting, artwashing, virtue signaling”, ou seja, que
o TNDMII terá desejado “melhorar a sua imagem, reclamando para si o lugar de
primeira instituição teatral portuguesa a tomar uma posição” (Não percebi se a
autora concorda com estas críticas, no entanto, esclarece que o primeiro teatro
a tomar posição sobre Gaza foi o LU.CA - Teatro Luís de Camões, com uma publicação
no Dia Mundial da Criança. Também não me lembro do TNDMII ter procurado afirmar-se
como sendo o primeiro a tomar posição). Escreve, ainda, Maria Gil que as críticas
à ausência da palavra “genocídio” no comunicado fizeram com que Pedro Penim, director
artístico do TNDMII, viesse a público esclarecer que foi não por medo, mas “por
prudência e pelo respeito que decorrem da responsabilidade institucional.” (É
importante dizer que Pedro Penim não veio a público esclarecer nada, até porque
o comunicado não é da sua autoria apenas, é da equipa do teatro. Na verdade, Pedro
Penim respondeu a uma crítica que lhe foi feita na sua página no Facebook). Por último, Maria Gil refere no seu texto que “há
quem compare o TNDMII com outras instituições que não hesitaram em tomar uma
posição forte e afirmativa, mesmo sem comunicados” (no entanto, não refere
quais são e eu não consigo pensar numa outra entidade cultural pública em
Portugal que tenha tomado uma posição forte sobre isto).
Antes de continuar, gostaria de dizer que
aprecio e valorizo todos os posicionamentos de instituições culturais sobre
questões políticas da actualidade – quando sinto que são honestos e não
oportunistas. Mesmo quando não são feitos nos termos que eu gostaria, mas
contribuem, na mesma, para a reflexão que devemos fazer como sector e para o
nosso crescimento, desenvolvimento e responsabilização. Não acho desejável que
se faça uma “hierarquização” da sua importância e, neste sentido, não me parece
relevante afirmar quem está nisto há mais tempo ou quem foi o primeiro a posicionar-se.
Dito isto, penso que devemos estar conscientes das diferenças entre elas, quando
estas contribuem, cada uma à sua maneira, para a relevância da Cultura na
sociedade.
Quando partilhei o meu artigo no Público sobre
o comunicado do TNDMII, uma colega lembrou-me da publicação
do LU.CA-Teatro Luís de Camões no Dia da Violência contra as Crianças. Já a
tinha visto e já a tinha partilhado, comovida com o gesto e com a afirmação que
“Somos apenas um teatro que pensa para e com as crianças. Que, como elas,
escuta o mundo e se indigna perante as injustiças. Pudesse um teatro servir de
abrigo.” Na publicação, não se falava de genocídio, limpeza étnica, apartheid,
mas falava-se de violência, de injustiça e, entre outros territórios, da Faixa
de Gaza. O que me chamou a atenção para ler a publicação, no entanto, foram as
cores escolhidas para a imagem, as cores da bandeira da Palestina. Não era a
primeira vez que o LU.CA tomava uma posição, de forma talvez mais discreta,
mais dirigida às pessoas atentas, conhecedoras. Já
tinha escrito sobre a forma (diferente) como o LU.CA e o TBA - Teatro do Bairro
Alto tinham tomado posição muito-muito cedo contra as agressões de um grupo da
extrema-direita a autoras de livros infanto-juvenis.
Estas publicações do LU.CA são diferentes (não
mais ou menos importantes, mas diferentes) do posicionamento da equipa de um
teatro nacional. Também do ponto de vista simbólico. Num sector onde as
instituições culturais tuteladas pelo Estado ou por Municípios não assumem um
papel político e confundem o silêncio
com uma neutralidade, o comunicado do TNDMII cria um precedente. Imagino que
não tenha sido fácil a equipa chegar a um consenso. Acredito que a escolha das
palavras terá sido igualmente difícil. Mas houve um comunicado e nele também se
refere que o Teatro se sente “impelido a transformar esta tomada de posição num
gesto consequente” e que “em diálogo com artistas, pensadores e organizações da
sociedade civil, procurará promover uma reflexão crítica sobre esta realidade da
Palestina e sobre o papel das artes perante a injustiça e a violência”. Não me
lembro de outra instituição cultural pública a tomar uma posição como esta
(também sobre outros temas – os incêndios, a crise da habitação, o racismo, a
xenofobia, os femicídios, etc.) e este é um bom precedente, algo sobre o qual o
sector poderá e deverá construir.
Ao mesmo tempo, esta não é a primeira vez que o
TNDMII abordou a questão da Palestina. Até porque as organizações culturais não
se posicionam apenas através de comunicados. Em 2021, em parceria com outras entidades,
organizou a conferência "Justiça
Parcial" - O Direito e a Questão da Palestina com Noura Erakat;
em 2024, no âmbito do programa “Atos” da Odisseia Nacional, UMCOLETIVO
apresentou “A Paz é a
Paz”, uma co-produção do TNDMII com outras entidades; novamente em 2024, no
âmbito do festival Alkantara, apresentou “Querida
Laila”, de Basel Zaraa.
No contexto da catástrofe que está a acontecer
em Gaza, devemos ainda referir um outro acontecimento pouco usual no nosso meio
e no nosso país: a posição de um grupo
de trabalhadores da EGEAC que se formou para protestar no ano passado a
cedência de espaço no Cinema São Jorge a Embaixada de Israel para a celebração
da criação do Estado de Israel. Tão raro como um comunicado da equipa de um
teatro nacional é ver um grupo a formar-se espontaneamente (não se trata nem da
comissão de trabalhadores nem do sindicato, estruturas mais formais de
representação dos trabalhadores) para manifestar o seu desacordo ou desconforto
em relação a uma decisão política da tutela.
Penso que não é só em Portugal que estes gestos são raros. A ideia da suposta neutralidade ou do silencio para evitar problemas ou da assunção que entidades culturais tuteladas pelo Estado ou por Municípios nada têm a ver com a actualidade política condiciona não só a nossa acção, mas também o nosso pensamento acerca do papel político da Cultura. Muito-muito por alto, lembro-me de alguns casos que me fizeram pensar:
- o protesto interno e externo que levou ao cancelamento de um aluguer no American Museum of Natural History por parte da Brazilian-American Chamber of Commerce, que organizaria uma gala onde o convidado de honra seria Jair Bosonaro (2019).
- o facto do Museu da República no Rio de Janeiro se tornar num posto de vacinação contra a COVID 19 (2021).
- a recusa do Japanese American National Museum de obedecer ao decreto de Donald Trump que obriga entidades que recebem financiamento federal a abandonar as suas políticas DEI – Diversidade, Equidade, Inclusão (2025).
A cidadania activa, que muitos dizemos desejar
e valorizar, não se constrói com instituições culturais silenciosas. As
instituições culturais têm um papel político (não partidário) e isto requer
maturidade - da parte de políticos/tutelas/profissionais da cultura/cidadãos –
para se criar um espaço de liberdade, de autonomia, de respeito, de empatia e
de pensamento crítico para se poder fazer política de qualidade. Não queria que
esta reflexão acabasse aqui. A
carta enviada pela Casa Branca à Smithsonian Institution informando da sua
decisão de “fazer a revisão” dos conteúdos de dezanove museus para garantir que
a narrativa seja “patriótica” é mais um sinal de alerta para instituições
culturais em todo o mundo.
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